Um blog da diáspora blasée


25.3.08

O trabalho

Após juntar tudo o que Mãe Valéria lhe tinha pedido, Marta chamou um táxi às escondidas da babá que há anos mandava nela e há dias não saía do seu pé, desconfiadíssima do inusitado comportamento da patroa. Mas só na Vieira Souto, por altura da Paul Redfern, teve coragem de olhar para dentro do saco de pano vermelho que o Panela tinha ajudado a preparar, entre orações a Iemanjá e promessas a S. Jorge. Viu então os dois dentes de alho podres, uma azeitona preta, o seu pentelho cor de laranja solitário dentro da caixa da Relojoaria Leblon, duas calcinhas usadas e muito velhas, a cabeça de uma galinha decepada, uma mosca morta e uma pila de bébé nato morto - de Dengue - na Baixada Fluminense. E teve a sensação de que talvez... Talvez pudesse estar completamente maluca. Mas isso não a fez sentir mal, pelo contrário. Deu um nó no pano e com desmesura pousou o saco a seu lado, como faria se se tratasse de uma sacola cheia de biscoitos e pastas de dentes, ou qualquer outra coisa normal.

O apartamento onde Mãe Valéria atendia era no fundo de um corredor enorme de um prédio de esquina, sujo da poluição dos carros, na Princesa Isabel. Um lugar perigoso dada a proximidade da favela e também da presença de um boteco imundo e sempre cheio de indigentes comendo restos de pasteis de carne ou queijo bolorento, abandonados por porteiros e diaristas que passavam a correr, querendo matar a fome a um e cinqüenta, direito a pastel e chá mate.

Era um quarto e sala, mal iluminado, com um banheiro de azulejos às flores azul cueca muito anos setenta e uma cozinha mínima, para onde eram levados os frascos com águas coloridas, que vinham sabe-se lá de onde, banhos de descarrego contra o olho grande, o ciúme, a malvadeza, a avareza, a impotência e outras maleitas mais ou menos mundanas e recorrentes.

Bateu duas vezes na porta branca, tentando não acertar nas marcas dos dedos deixadas pelos outros clientes e esperou que a assistente coxa, de um metro e cinqüenta, olhos borrados de rímel e unhas pintadas em casa, lhe viesse abrir a porta. Rezou para não se cruzar com ninguém na salinha de espera que felizmente se apresentou vazia: Só ela sentada no sofá de linóleo pegajoso e barulhento, dona Iracy a assistente coxa sentada atrás da mesinha, um peixe vermelho no aquário redondo e a Ivete Sangalo aos pulos no som, por certo comprado em dez prestações de 9.99 reais, sem juros, na Casa e Vídeo.

Passaram cerca de dez minutos, duas músicas de Ivete, antes que dona Iracy a mandasse entrar: Mãe Valéria está pronta e esperando você, filha.
Merda, agora é que estou fodida, pensou, logo entrando saquinho na mão e fechando a porta atrás de si. Educadamente, é claro.