Um blog da diáspora blasée


11.4.08

Da amizade

Na noite a que anos mais tarde gostava cinicamente de se referir como, A noite das tâmaras, Marta tinha prometido a Joana fazer-lhe companhia. Que não. Que não lhe custava nada e mais, isso iria afastá-la da morbidez de Clara, sempre a fazer-lhe festas na cabeça e a lembrá-la de que estava quase careca, Hoje caiu muito não foi, querida?
Obrigada, ainda bem que vens tu que já não a agüento, dissera-lhe Joana ao telefone, sem pingo de emoção.
As pessoas muito perto da morte deixam de se preocupar com as palavras. Fazia sentido Joana ter passado a usar palavras ofensivas para caracterizar comportamentos ofensivos. Coisa que jamais tinha feito antes do C. e que ainda a chocava.

Jantaram as duas. Canja e pescada cozida sem sal. Frente ao José Rodrigues dos Santos, que Marta sabia ser o tipo de homem de Joana, mas isso já não interessava nada. E acabaram ainda antes de Teresa chegar de surpresa, num pulo, depois de sair do banco, cansadíssima.
Ó pá sabes lá, Joana, os gajos matam-me de trabalho, ando tão cansada. Como é que te sentes hoje? Conseguiste fazer cócó?
Não. Ainda não. Mas vai-te embora, Teresa. A Marta fica comigo hoje. Vai-te embora descansada, daqui a pouco a Marginal está que não se pode.
Sim, já vou, não me estejas a mandar embora. E tu Marta, como estás? Mostra lá as maminhas para eu ver como ficaram? Eles lá têm técnicas muito avançadas, não é?
É. Queres ver? Acho que ficaram lindas. Lembras-te como estavam, não era?
Sim. Realmente estão lindas Puseste quanto?
160ml. O médico decidiu durante a operação. Eu tinha pedido 120ml. Loucos, estes gajos, julgam-se Deus. Quando acordei tinha umas mamas até ao queixo.
Marta olhou para o lado e viu que Joana esboçava um sorriso. O que a descansou. Ao menos sem dores, pensou.
Continuaram a falar mais um bocado até que Teresa avisou que tinha que ir. Joana nem se mexeu, como se nada daquilo fosse com ela. Às vezes fechava os olhos e não se sabia se estava a dormir. Ninguém perguntava.
Marta levou a amiga até à porta, Péssima. Está péssima, Teresa.
Baixaram a cabeça, como se extenuadas da conversa que tinham estado a fazer e abraçaram-se.

Quando voltou à sala viu, de relance, que tinha uma mensagem no telemóvel e Joana avisou que estava cansada, Prepara-me só uma botija, um copo de água. Os comprimidos estão naquela gaveta. E apontou enquanto se levantava a custo e lhe virava as costas.
Marta teve a certeza que as dores da operação ainda não tinham passado, útero e ovários tudo fora.
Mas assim que ela saiu, apanhou o telefone e leu a mensagem de Sebastião:
Linda vem cá ter. Estou à tua espera. Vamos a uma festa na casa de um amigo que quero que conheças.
Até já. Beijo.

Marta pousou o telefone, ouviu os barulhos de Joana deitando-se, foi à cozinha preparar a botija e levou-a à amiga.
Estás bem? Tomaste o comprimido?
Joana fez que sim com a cabeça. Marta deu-lhe um beijo na testa e disse, Dorme bem... Uma pausa e continuou, Olha... O Sebastião quer que vá com ele a uma festa. Achas que ficas bem? Eu não me demoro nada, vou e volto...
Vai Marta, vai. Não te esqueças é das chaves. Eu fico bem.

Sem conseguir olhar para a amiga e sem saber o que fazia, saiu porta fora. Já estava atrasada e Sebastião ainda não podia esperar. É que só horas mais tarde em casa do arquitecto, Marta ficaria a saber, música do acaso, com quem o cabrão se havia andado a empanturrar de tâmaras, em Marrocos.
Joana, é claro, já não a veria chorar.